| Retrato de Gil Vicente (1882), por António Nunes Júnior. Paços do Concelho de Lisboa. |
Gil Vicente, nascido por volta de 1465 e falecido cerca de 1536, é amplamente reconhecido como o pai do teatro português e uma das figuras mais marcantes da literatura renascentista em Portugal. Dramaturgo, poeta, músico, ator e encenador, sua obra representa uma ponte entre a Idade Média e o Renascimento, refletindo as transformações sociais, culturais e espirituais da época. Embora haja controvérsias sobre seu local de nascimento — com hipóteses que incluem Barcelos, Guimarães, Lisboa e as Beiras —, desde as comemorações oficiais de 1965, a data de 1465 é geralmente aceita como a de seu nascimento.
Gil Vicente é frequentemente associado à figura do ourives, autor da célebre Custódia de Belém, produzida com o primeiro ouro vindo de Moçambique e destinada ao Mosteiro dos Jerónimos. Essa ligação é sustentada por sua familiaridade com termos técnicos da ourivesaria, presentes em sua obra, embora alguns estudiosos tenham contestado essa identificação. Independentemente disso, sua atuação como artista multifacetado é indiscutível, tendo desempenhado papéis importantes na corte portuguesa, inclusive como organizador de eventos palacianos.
Sua estreia como dramaturgo ocorreu em 1502, com a peça “Auto da Visitação” ou “Monólogo do Vaqueiro”, apresentada nos aposentos da rainha D. Maria para celebrar o nascimento do príncipe D. João III. A partir desse momento, Gil Vicente passou a ser figura constante nas celebrações da corte, escrevendo e encenando peças para diversas ocasiões. Dona Leonor, viúva de D. João II, tornou-se sua grande protetora, incentivando sua produção artística. Ao longo dos anos, Gil Vicente escreveu cerca de 44 peças, abrangendo uma ampla variedade de gêneros, como autos, farsas, comédias, tragicomédias e mistérios, misturando elementos religiosos, alegóricos e profanos.
Entre suas obras mais célebres está a trilogia das barcas: “Auto da Barca do Inferno” (1516), “Auto da Barca do Purgatório” (1518) e “Auto da Barca da Glória” (1519), que satirizam os vícios humanos e criticam severamente os costumes da sociedade portuguesa do século XVI. Outra peça de destaque é a “Farsa de Inês Pereira” (1523), que aborda com humor e ironia as escolhas matrimoniais e os papéis sociais da mulher. Gil Vicente utilizava uma linguagem acessível, repleta de dialetos e expressões populares, o que aproximava suas obras do público e conferia autenticidade às personagens.
Sua crítica social era contundente, e ele não hesitava em satirizar o clero, a nobreza e até mesmo o próprio rei, como demonstra sua carta a D. João III após o terremoto de Lisboa em 1531, na qual defende os cristãos-novos contra acusações infundadas. Essa postura crítica, aliada à sua habilidade artística, garantiu-lhe prestígio e liberdade para abordar temas delicados com ousadia.
Gil Vicente também se destacou pela sua poesia lírica, religiosa e patriótica. Era conhecido como o “poeta da Virgem”, devido à devoção mariana presente em obras como o “Auto de Mofina Mendes” e o “Auto da Alma”. Seu lirismo amoroso, por vezes erótico e brejeiro, revela influências de autores clássicos como Petrarca. A visão filosófica presente em sua obra aproxima-se do platonismo, distinguindo entre um mundo ideal, de paz e amor divino, e um mundo terreno, marcado pela falsidade e desordem.
Após sua morte, seus filhos Paula e Luís Vicente organizaram a primeira compilação de suas obras. Em 1586, uma segunda edição foi publicada, embora censurada pela Inquisição. Somente no século XIX, com a edição de 1834 em Hamburgo, sua obra foi redescoberta e valorizada. Gil Vicente deixou um legado duradouro, influenciando a cultura popular portuguesa e sendo estudado por figuras como Erasmo de Roterdão, que aprendeu português para ler suas obras no original.