O que é NARCISISMO (Narzissmus) para a Psicanálise?
| Caravaggio. (2017, February 17). Narcissus. World History Encyclopedia. |
Para compreender o narcisismo sob a ótica da psicanálise, é necessário realizar um mergulho profundo em uma das transições teóricas mais complexas e fundamentais de Sigmund Freud. O conceito, longe de ser uma simples descrição de vaidade ou de excesso de amor-próprio no sentido coloquial, constitui-se como um pilar estruturante do desenvolvimento psíquico humano. Essa jornada teórica articula a sabedoria trágica da mitologia grega com a metapsicologia moderna e revela como a imagem que construímos de nós mesmos pode funcionar simultaneamente como base de sustentação e como armadilha silenciosa, capaz de aprisionar o sujeito em um circuito fechado de idealização e sofrimento.
A genealogia do termo remonta diretamente ao mito de Narciso, o jovem de beleza estonteante cuja história é imortalizada na obra Metamorfoses, de Ovídio. Segundo a profecia do vidente Tirésias, Narciso viveria uma longa vida desde que jamais se conhecesse. O drama se intensifica quando o jovem, após rejeitar inúmeros pretendentes, incluindo a ninfa Eco, que definha até restar apenas sua voz em razão do desprezo que recebe, é conduzido pela deusa Nêmesis a uma fonte de águas cristalinas. Ao inclinar-se para beber, Narciso confronta seu próprio reflexo e apaixona-se perdidamente por aquela imagem. A tragédia mitológica reside na impossibilidade da satisfação: ele tenta abraçar a figura refletida na água, mas o objeto amado se desfaz ao menor toque. Consumido pela inanição e pela tristeza, morre fixado em si mesmo, incapaz de estabelecer qualquer vínculo com o mundo externo. Na leitura psicanalítica, esse mito torna-se a metáfora perfeita do fechamento do indivíduo sobre o próprio ego, um estado em que a alteridade é sacrificada em nome de uma miragem de perfeição que jamais se concretiza.
Freud elevou essa intuição mitológica ao estatuto de categoria científica em seu ensaio seminal de 1914, Sobre o Narcisismo: uma introdução. Antes dessa obra, a teoria freudiana dividia rigidamente as pulsões entre aquelas voltadas à autopreservação, relacionadas às necessidades biológicas do ego, e as pulsões sexuais, direcionadas a objetos externos. No entanto, a observação clínica de pacientes psicóticos e de certos comportamentos infantis levou Freud a perceber que a libido não está necessariamente investida no mundo exterior. Ele postulou a existência de um estado inicial, denominado narcisismo primário, no qual o bebê é o seu próprio objeto de amor. Nesse estágio, não há distinção entre o Eu e o mundo, e a criança vive aquilo que Freud chamou de onipotência do pensamento, sentindo-se o centro absoluto do universo, a figura simbólica de “Sua Majestade, o Bebê”. Esse investimento inicial é indispensável, pois é por meio dele que o sujeito constrói uma unidade psíquica e uma noção embrionária de identidade.
O desenvolvimento saudável, porém, exige que parte dessa energia psíquica seja progressivamente direcionada para fora, para os outros e para o mundo. Quando o indivíduo, em razão de traumas, frustrações intensas ou falhas ambientais, retira essa libido dos objetos externos e a redireciona integralmente para o próprio ego, instala-se o que a psicanálise denomina narcisismo secundário. Esse retorno da energia para o interior caracteriza estados de isolamento profundo e patologias em que a realidade externa perde valor, consistência e significado. Para explicar essa dinâmica, Freud recorreu à analogia hidráulica dos vasos comunicantes: quanto mais libido é investida no objeto, menos energia resta para o ego. Inversamente, quanto mais o ego se apropria da libido, mais empobrecida se torna a capacidade de amar o outro. O apaixonamento seria o estado em que o ego se esvazia em favor do objeto amado, enquanto o narcisismo exacerbado seria o estado em que o ego absorve toda a capacidade de afeto, tornando a empatia praticamente impossível.
Outro desdobramento fundamental dessa teoria é a criação do Ideal do Eu. À medida que a criança percebe que não é de fato o centro do universo e que o amor dos pais é condicionado a expectativas, normas e limites, ela tenta recuperar a perfeição perdida do narcisismo primário projetando um modelo idealizado de si mesma. O Ideal do Eu torna-se o padrão pelo qual o sujeito se mede e se julga. Uma autoestima saudável depende do equilíbrio entre o Eu real e esse ideal. Quando a distância entre ambos se torna excessiva, surgem sentimentos de inferioridade, culpa, vergonha e melancolia, pois o sujeito nunca se percebe à altura da imagem que acredita que deveria encarnar.
Na cultura contemporânea, o conceito de narcisismo adquire novos contornos e se torna ainda mais visível. Se na época de Freud o conflito central era a repressão dos desejos, hoje muitos analistas apontam para uma “patologia do vazio” ou para uma “cultura da imagem”. As redes sociais transformaram-se em espelhos modernos de Narciso, onde a busca incessante por validação e a construção de perfis idealizados substituem o encontro real com o outro. O risco atual é o mesmo do mito: o sujeito pode se perder em sua própria projeção estética, tornando-se incapaz de lidar com a realidade imperfeita, imprevisível e frustrante dos relacionamentos humanos.
É fundamental reiterar, contudo, que o narcisismo não é intrinsecamente maligno. Existe um narcisismo saudável, ou trófico, que funciona como uma reserva de autoestima necessária para a sobrevivência psíquica, para a ambição criativa e para a defesa dos próprios limites. Sem essa dose mínima de investimento em si mesmo, o indivíduo não teria forças para enfrentar desafios, sustentar projetos ou proteger sua integridade emocional. O problema reside na fixação e na estagnação. Enquanto a saúde mental pressupõe uma fluidez que permite ao sujeito alternar entre o olhar voltado para dentro e o olhar voltado para fora, o narcisismo patológico cristaliza o indivíduo em uma posição rígida, semelhante a uma prisão de vidro. A relação entre o mito e a psicanálise nos ensina que amadurecer consiste em desviar o olhar do reflexo na fonte para descobrir que a verdadeira satisfação não está na imagem estática de si mesmo, mas na troca dinâmica, arriscada e transformadora com a alteridade. O desafio humano permanece o mesmo que Narciso não conseguiu superar: reconhecer que o outro existe e que somente por meio desse reconhecimento podemos escapar do isolamento mortal do espelho.
Algumas referências:
FREUD, Sigmund. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. (1923). O id e o ego. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Grimal, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34, 2017.
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