As duas primeiras décadas do século XXI foram marcadas por transformações significativas nas formas de produção de conhecimento acadêmico e nas práticas de letramentos, impulsionadas pelas conquistas dos movimentos sociais, em especial do movimento negro. Parte integrante do universo científico, a juventude negra das periferias e das favelas, embora enfrente inúmeros desafios, tem passado a ser e a se ver como produtora de conhecimento, agente cultural e autora de suas próprias narrativas.
Ana Lucia Silva Souza (2011), em diálogo com a juventude do hip-hop, aponta para práticas de letramento de reexistência que ressignificam a leitura e a escrita por meio da apropriação da historicidade de heranças africanas e afrodiaspóricas. Ao etnografarem as periferias do Rio de Janeiro, Adriana Lopes, Daniel Silva e Adriana Facina (2019) mostram que os saberes e as escritas de juventudes que circulavam em bailes funks (Lopes, 2011), nos becos e vielas das favelas, hoje sobrevivem e comparecem em muitas esferas da vida acadêmica. Kassandra Muniz (2020), a partir do conceito negro-epistemológico de mandinga, destaca como a trajetória de mulheres negras na universidade subverte a branquitude produzida por enunciados que sustentam relações desiguais de poder, permitindo outras formas de viver a linguagem.
Como resultado de lutas históricas do movimento negro, especialmente em contextos de governos democráticos, vários marcos passaram a integrar a legislação educacional. É o caso da Lei 12.711/2012, conhecida como “Lei de Cotas”, que garante vagas em universidades e institutos federais para estudantes de escolas públicas, negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência. Nas palavras de José Jorge de Carvalho (2022, p. 21), essa lei tem exigido a descolonização do currículo para a formação de “licenciados, bacharéis, mestres e doutores com bases epistêmicas afro-brasileiras, indígenas e de demais povos tradicionais”.
Focalizando os avanços das políticas públicas de enfrentamento ao racismo, em intersecção com classe, gênero e sexualidade, este dossiê pretende contribuir para reflexões que incentivem a criação de currículos mais pluriepistêmicos (Carvalho, 2022). Reuniremos artigos que fundamentem o que podemos chamar de um gesto textual (Derrida, 1995), isto é, uma ação de desconstrução que envolva a análise crítica do próprio conceito de letramento, deslocando a perspectiva branca e eurocêntrica que o atravessa. Inspiradas pelo quilombola Antônio Bispo (2023), trata-se de abordar os letramentos por meio da elaboração de práticas de pesquisa e de formação docente que incorporem a relação entre diferentes saberes — especialmente os tradicionais, populares, negros e indígenas — numa convivência em que “nem tudo que se ajunta se mistura” (p. 12). Chamaremos esse gesto de Manifesto dos Letramentos Contemporâneos – um performativo, um fazer/dizer (Austin, 1962) que revela uma lógica pautada na justiça social presente nos letramentos vividos no cotidiano de uma margem/centro onde emergem temporalidades e agências plurais, éticas e estéticas, silenciadas ao longo da história da modernidade (Augusto, 2019).
Portanto, mais do que considerar a origem acadêmica do termo letramento, nossa proposta é etnografar (Blommaert, 2008) as formas contemporâneas de circulação e uso desse termo e conceito no debate público (dentro e fora das universidades, nas escolas, nas políticas públicas, nos meios digitais, nos movimentos sociais etc.). Partindo do pressuposto de que o contemporâneo é plural e intrinsecamente político, buscamos reunir textos em diferentes gêneros que reflitam sobre como as questões atuais têm transformado as concepções e práticas de letramento, as formas de produção de sentido, autoria, leitura, escrita e o uso da oralidade.
Organizadores:
Adriana Carvalho Lopes
Ana Lúcia Silva Souza
Kassandra Muniz
Prazo para submissão: 31 de dezembro de 2025
Para mais informações, acesse: https://periodicos.ufmg.br/index.php/rbla/announcement/view/680